83º Poema da Semana | 22out2013

Antônio de Gouveia,
clérigo em Pernambuco

(circa 1570)

padre do ouro, nigromante,
versado em magia e minas,
veio ao Brasil em degredo,
celebrou missas estranhas,
matou índios prisioneiros,
roubou cunhãs dos amantes

tentando se defender
da fama de suas façanhas,
rascunhou de próprio punho,
debochado, um testemunho
dos hábitos absurdos
deste outro lado do mundo

mergulhou o bico-de-pena
num tintório de urucum
(que pensem que escrevo a sangue
este documento acre),
misturando ao suco rubro
a resina de um bom cedro
(não falte ao escriba lacre,
para seu vômito acerbo)

preparou um chá com o funcho
que carregava no bolso
e fez um feroz discurso
contra os feitiços dos bruxos

(ó ave de mau agouro,
leva esse teu voo esconso
para qualquer outro pouso)

com pensamentos infusos,
esgueirou-se até o arbusto,
e acocorado na relva,
lançou o hábito às ervas

depois espantou um besouro
de suas sandálias de couro,
limpando (sirva de adubo)
a bosta com um sabugo
– acúleos de ora-pro-nóbis,
nobre oiro dos conversos! –,
e, sem perdão do perjúrio,
rubricou no papel sujo:

De uma aldeia em Pernambuco,
neste outubro controverso.
Deste em Christo filho indigno,
padre Antônio de Gouveia.

*Josely Vianna Baptista_1957-_Roça Barroca_2011